segunda-feira, 18 de abril de 2011

Miolo de pote

Vizinhos, pero no mucho
(ou Notícias de além-fronteira, ou Nós não vizinhamos com eles...)

Marcos Vinicius Neves

Nos últimos anos tenho tido a felicidade de conhecer grandes e variados contadores de histórias nesse Acre de meu Deus. Desde aqueles que falam sem cessar e ninguém consegue encaixar uma pergunta sequer e por isso mesmo possuem um certo encanto de alagação. Passando por aqueles que do alto de insuspeita simplicidade inundam de sabedoria cada palavra dita e cada sentido traçado. Ou, ainda, por aqueles outros que completam sua imensa profundidade de pensamento com imagens inesperadas, singulares e surpreendentes pelas ricas interpretações que oferecem acerca de seu tempo de vida nesse mundo. Tantos que nem vou tentar relacioná-los aqui, pelo risco imperdoável de esquecer alguém.

Mas entre tantos, devo confessar que um de meus preferidos é o Toinho Alves. Me lembro bem que quase todas as vezes (e foram muitas nos últimos anos) em que lhe perguntavam: Mas o que é “Florestania” mesmo? Ele sacava de seu surrado bisaco, uma história que me encantava profundamente. E que, ainda por cima, tinha enorme eficácia ao revelar um outro olhar sobre a vida na floresta que é muito pouco compreendido pelos seres “urbanos”.

Diz Toinho que entre as famílias do Juruá é muito comum o povo dizer que “vizinha” com a casa de fulano de tal que fica a três horas de caminhada, mas não vizinha com o beltrano que mora a apenas meia hora. Ficamos sabendo que é assim porque vizinhar com alguém é muito mais do que apenas estar próximo. Vizinhar é guardar a melhor parte da caça, o quarto traseiro, para presentear seus vizinhos, mesmo que acabe sobrando só algum pedaço de quarto dianteiro para sua própria família.

O povo do Juruá, portanto, nos ensina que vizinhar é não só contar com o outro diante de alguma eventual dificuldade, mas cultivar por ele um comportamento ético, repleto de respeito e de estima verdadeira. Completamente diferente do que acontece em nossas grandes-mega-cidades onde os vizinhos de andar, de prédio ou de rua, mal se olham quando estão no mesmo elevador. Constrangedora solidão daqueles que vivem nessa massa amorfa de milhões de rostos desconhecidos.

Ou seja, o povo urbano não sabe mais o que é vizinhar, esqueceu. Mas aqui na floresta, a vida às vezes é tão difícil, tão trabalhosa, que pra se ter tranqüilidade é preciso cultivar a solidariedade e a generosidade. Afinal, nunca se sabe se um dia não será preciso tirar alguém doente numa rede durante horas de caminhada ou de navegação. Por isso, ao chegar a qualquer casa da floresta, sempre se pode pedir abrigo e um prato de comida que será certamente atendido, com o que houver de melhor. Isso é “florestania”. Viver em função de uma lógica distinta da maioria dos cidadãos deste vasto e repleto planeta em permanente estado de guerra e destruição.

Preciso admitir que muitas vezes eu mesmo contei essa história pra explicar um dos possíveis sentidos do conceito de “florestania” que tanto foi discutido nos últimos anos como explicação fundante e estrutural de um novo momento político da história do Acre. Mas, dessa vez, eu não estou contando essa história pra falar de “florestania”. É que me lembrei dela ao deparar com o absurdo silêncio da imprensa acreana, ao longo desta semana, acerca da recente eleição presidencial de nosso país vizinho: o Peru.

Se fossemos depender apenas das informações dos jornais locais, pareceria que o Peru não está decidindo o desenrolar de sua realidade nos próximos anos. Poderíamos até achar isso normal. Outro país, outra língua. Não estivéssemos passando por um processo de interligação política e econômica completamente novo entre o Acre e o Peru. Seria completamente normal, se não estivéssemos diante de enormes problemas sociais na fronteira graças à extração madeireira indiscriminada, à exploração de hidrocarburetos e aos projetos neoliberais do presidente Alan García. Um processo recente e particularmente intenso de expropriação dos povos indígenas e tradicionais do lado de lá e de devastação das regiões de cabeceiras dos nossos principais rios, que já vem causando inúmeros conflitos e problemas ambientais, que precisam ser efetivamente encarados em toda sua gravidade.

Como se não fizesse nenhuma diferença para nós no Acre se o vencedor da eleição peruana for Humala ou Fugimori. Como se não significasse nada as diferenças entre um nacionalista - meio Cha

ávez, meio Evo, meio Lula - e uma conservadora - meio pai, meio filha, meio pior do que o atual Alan. Como se tudo isso não nos pudesse afetar de forma alguma. Mas, nesse momento em especial. Não olhar pro Peru é deixar de olhar para uma parte importante de nós, que é nossa vasta fronteira com eles, através da qual compartilhamos muito mais do que simples marcos de limites.

Impressionante a falta de perspicácia e senso de atualidade da imprensa acreana. Aqui do lado uma importante eleição presidencial rolando e não vemos nada. Mas é fácil apenas criticar a imprensa. No fundo o problema não é dela, mas da própria sociedade. Como cobrar da imprensa local uma cobertura interessante, responsável, profunda sobre um vizinho tão próximo se os próprios acreanos não tão nem aí pro que acontece acolá? Não tenho dúvida de que, se os acreanos tivessem consciência da atual situação de nossas fronteiras, a imprensa fatalmente estaria dando muito mais atenção ao outro lado das notícias...

Mas nada, nem um editorialzinho, nem uma análise mais embazada. Só recortes da grande imprensa através do - sempre mais confortável - “Ctrl+Z/Ctrl+C”. O que a gente precisa mesmo é de uma profunda mudança cultural, que nos faça observar o mundo circundante em outra perspectiva. Enquanto a integração com o Peru for traduzida apenas por obras de infraestrutura, nenhuma interrrelação será real. A ligação física entre as cidades do Acre e do Peru pode vir a ser muito importante se não estiver restrita a interesses econômicos, mas atender aos interesses e expectativas sociais dos acreanos.

Afinal, isolamento é muito mais que uma questão meramente física. Poderíamos estar mais longe uns dos outros e ainda assim estarmos mais juntos. Da mesma forma que podemos estar muito próximos uns dos outros, como vizinhos lado a lado, e nos encontrarmos completamente sós diante da tal pós-modernidade e seus paradoxos. Aqui no Acre ainda não padecemos da mesma esquizofrenia “urbana” da solidão na multidão. Mas, certamente, ainda temos outros tipos de síndromes. Como esse estranho gosto por se considerar uma ilha em relação ao mundo, a enigmática ilha Acre que alguns ainda insistem em dizer que não existe.

De um jeito ou de outro, é preciso concluir que, infelizmente, ainda não vizinhamos com los hermanos peruanos, como também nunca o fizemos com os patrícios de la Bolívia. Até quando?

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