segunda-feira, 31 de março de 2008

Heródoto Barbeiro
entrevista Evo Morales
Durante a conversa com Heródoto, Morales fala sobre as relações Brasil-Bolívia após a crise do gás, da quebra de contratos e dos problemas enfrentados pelos plantadores de soja brasileiros instalados na fronteira dos dois países. Num dos trechos mais polêmicos, o presidente acusa o embaixador norte-americano no País de agir para derrubá-lo do governo. No final, de forma descontraída, ainda há espaço para umas palavras sobre futebol, uma vez que La Paz foi vetada pela Fifa - por sua altitude - para a realização de jogos internacionais. A entrevista será apresentada em forma de série, entre esta segunda-feira e sábado, no Jornal da Cultura.

HERÓDOTO BARBEIRO
Presidente Evo Morales, muito obrigado por sua entrevista para a imprensa brasileira.

EVO MORALES
Bom, muito obrigado pela sua presença, pela visita. Estou contente com esta entrevista. Tomara que as reflexões que façamos sejam importantes para os países vizinhos e, especialmente, para os nossos povos.

HERÓDOTO
Presidente, antes de falarmos de futebol, que é mais polêmico, vamos falar um pouco do gás. Quando vinha ao aeroporto, disse para o taxista: vou à Bolívia para entrevistar o Presidente Evo Morales. Ele me disse: “meu carro é a gás. Pergunta para ele se a Bolívia vai garantir gás para que os taxistas brasileiros possam utilizá-lo no Brasil”.

EVO MORALES
Bom, nesta conjuntura eu gostaria mais de falar sobre futebol. No entanto, sinto, penso que o Brasil não vai nos abandonar na defesa da universalidade do futebol, do esporte. A liderança do Brasil é mundialmente reconhecida e esperamos trabalhar juntos no esporte também. Somos dois países vizinhos, dois países irmãos com presidentes que têm enormes coincidências. Um presidente que vem das lutas sociais, dos trabalhadores, e o outro que vem das lutas sociais, indígenas e camponesas. É nossa obrigação nos unirmos para atender a demanda dos nossos povos. Um país reconhecido regionalmente pela sua liderança, e um país pequeno como a Bolívia espera muito do Brasil. Estou certo de que o Brasil não tem muitos problemas econômicos. E a Bolívia precisa de investimento. Combinando o investimento e os benefícios para os dois países, estou certo de que não vai faltar gás, nem energia para os irmãos brasileiros. Até agora estamos muito unidos. Em algum momento houve desconfiança com o tema da nacionalização. A gente falou: “queremos sócios, não patrões nem donos dos nossos recursos naturais”. Respeitaram nossa mensagem, e depois da última visita do presidente Lula e sua equipe e parte de seu gabinete, foi criada uma confiança, uma nova confiança para resolver e atender as demandas. É apenas uma questão de investimento. Temos que realizar os investimentos o mais rápido possível, assim não faltará gás ou energia para a Bolívia, nem para o Brasil. Temos avançado bastante até agora e isso é muito importante. Desta forma a gente tem que se unir regionalmente para atender as demandas urgentes, como é o uso da energia.

HERÓDOTO
Presidente, o Brasil precisa comprar mais gás da Bolívia. A Bolívia tem condições econômicas para fazer investimentos, para aumentar a sua produção e oferecer mais gás ao mercado brasileiro e até mesmo argentino?

EVO MORALES
A grande debilidade do povo boliviano e do Estado é o investimento. Repito, depois da última entrevista com o presidente, da visita especialmente, estou confiante porque a Petrobrás garantiu o investimento. Se tivermos investimento, temos mais, por exemplo, para resolver as demandas internas, assim como para honrar nossos compromissos com o Brasil, com Argentina. Então, meu raciocínio é o mesmo: trabalhemos juntos, Argentina, Brasil e Bolívia. Assim, nos momentos difíceis de algum país, temos que nos manter juntos, solidariamente. Outro país, mas solidariamente juntos até que tenhamos novos campos, novos poços que dêem mais gás ou energia para os países da região. Desde que assumi como presidente, já foram descobertos três campos, três poços mais. Um em Guacaya, Departamento de Chuquisaca, que vai gerar 800 mil milhões de metros cúbicos por dia, e outro em Tacobo, Santa Cruz, um milhão 200 mil milhões de metros cúbicos por dia. Tem outro menor em Cochabamba, em Canata, também. Eu digo, vamos colocar este gás no mercado e me respondem que precisamos ter gasodutos, além de algumas plantas industriais também. Isso leva tempo. Mas porque não nos mobilizamos juntos para fazer os gasodutos? Para comprar os dutos temos que esperar seis meses, oito meses. É esse o nosso problema. Se neste momento, dos três campos, colocamos no mercado dois deles, o Guacaya e o Tacobo, iríamos resolver muitos dos problemas que ainda temos. Por isso temos que nos unir. Uns têm gás para colocar no mercado, outros têm dinheiro para investimento.Quero reiterar minha confiança na Petrobras depois dos últimos acordos. Temos que acelerar. Acelerar para atender as demandas dos nossos povos.

HERÓDOTO
Presidente, os investimentos que forem realizados na Bolívia, os seus contratos serão honrados?

EVO MORALES
Totalmente. Nas comunidades camponesas indígenas temos uma espécie de partido, é assim que o chamamos. Por exemplo, eu tenho um hectare de terra e você está sem, mas você quer trabalhar na terra, produzir. Então eu dou a minha terra e você a trabalha. E depois compartilhamos a produção 50% e 50%. Mas eu não perco a posse da minha terra. Se em 10 hectares plantamos 20 toneladas de batata. 10 para você que trabalhou, 10 para o dono. Isso é muito respeitado nas comunidades camponesas e indígenas, em temas agrícolas ou da pecuária. E quando falamos de investimento, estamos dizendo que o investidor primeiro tem que recuperar seu investimento e depois tem todo o direito de ter acesso aos lucros. Nós sabemos disso. Isso faz parte de nós. Que ambos se beneficiem. Que o Estado e o povo boliviano se beneficiem, mas também o investidor. Até hoje nunca atentamos nenhum investimento, a não ser com aqueles que não cumpriram com as leis bolivianas. O caso Vinto, por exemplo. Depois da recuperação da empresa metalúrgica Vinto. Vendo os documentos, concluímos que eles não nos respeitaram. Quando demonstramos que não cumpriram com isso e aquilo, eles reconheceram o erro. As empresas que cumprem com as normas bolivianas, com os contratos, com o investimento, têm tudo garantido. O investimento será respeitado e terá direito aos lucros, assim como está no contrato.

HERÓDOTO
Não importa de que origem sejam esses investidores? Não importa de que nações venham esses investidores?

EVO MORALES
Estamos falando de todos os investidores. Não somente de nacionalidade ou empresa, mas também de setores. Não somente o tema dos hidrocarbonetos. Temos outros investimentos em outros setores que igualmente são respeitados. Somos responsáveis com o que falamos. O controle do Estado sobre os recursos naturais. Um exemplo são as refinarias, negociamos e devolvemos o dinheiro. Por que eles compraram e nós devolvemos o dinheiro. E sem nenhum problema. Eles entendem perfeitamente. Esta é uma maneira de sermos responsáveis com os investidores.

HERÓDOTO
Presidente, quando o senhor lembrou de sua origem e a comparou com a do presidente Lula... O presidente Lula está empenhado no Brasil para promover uma reforma agrária. Como é a reforma agrária que o senhor pretende para Bolívia?

EVO MORALES
Eu falei em algum momento que temos que colocar o gás no campo. Mas, meus companheiros entenderam errado. Pensavam que Evo ia meter gás lacrimogêneo nos movimentos rurais. Mas, não. Temos que investir os recursos econômicos provenientes do gás no setor agropecuário. É um debate permanente. Mas, evidentemente, a escassez de alguns produtos, não só nacionais, nem regionais, mas internacionais, nos diz que temos que melhorar a produção. O governo boliviano tem uma revolução agrária. A reforma agrária de 1952, que aconteceu graças ao levante armado de movimentos camponeses indígenas e dos mineiros. Uns pela reforma agrária, outros pela nacionalização das minas, pelo voto universal. Imagine só, até 1952 não tínhamos voto universal. O movimento camponês indígena não tinha direito a voto, a eleger seu presidente, suas autoridades. Bom, ainda bem que esse levante mudou isso. No entanto, a reforma agrária acabou na Bolívia. Também no altiplano e no vale acabou no minifúndio. Alguns irmãos camponeses dizem: no surcofúndio. Enquanto isso, no oriente boliviano o latifúndio continua. Aqui a reforma agrária do governo tem quatro componentes importantes. A redistribuição da terra que já começamos. Antes um hectare saneado custava quase 10 dólares, agora é mais ou menos um dólar. Em dez anos, antes da aplicação de uma nova política agrária, sanearam apenas 9 milhões de hectares. Hoje, em dois anos, conseguimos sanear esses 9 milhões de hectares. Esses são alguns avanços da redistribuição da terra. Com respeito à mecanização, graças à cooperação da Venezuela adotamos e ganhamos tratores. E com o novo acordo que temos com o Brasil, temos acesso a créditos e esperamos que o Parlamento consiga apoiar e ajudar o mais rápido possível para que com esse crédito chegue em maquinaria para melhorar a produção. Perante a escassez do alimento, decidimos que os produtos como o milho, trigo, soja e arroz terão 0% de juros. E caso o produtor queira pagar com seus produtos, é ainda melhor. Começamos com esse tipo de reformas. Estamos fazendo reuniões. Temos que apostar também num país orgânico, com produtos ecológicos. Isso é mais difícil, mas acredito que temos que implementar a política para um país mais orgânico. Respeitamos os transgênicos, algumas empresas só querem melhorar. Mas o melhor é que o ser humano viva com alimentos sadios. Também apostamos num comércio justo. Estamos frente ao TLC, o Tratado do Livre Comércio entre os Povos, que deve funcionar como as multinacionais agrárias que tem seus mercados garantidos, mas destinado ao pequeno produtor. Seus produtos também devem ter preços justos e um mercado garantido. Portanto resolveremos esse problema social para enfrentar qualquer conflito social no país. A melhor forma de conseguir a paz social é com igualdade social dos nossos povos. É um trabalho permanente de apoio às pessoas que querem crescer com seus produtos, seu trabalho e seu esforço. É a oportunidade dos setores agropecuários para a redistribuição da terra, a mecanização, a industrialização, mas também com uma aposta nos produtos ecologicamente corretos. E também com um comércio justo.

HERÓDOTO
Presidente, no Brasil a reforma agrária é feita em terras improdutivas. Esse é o mesmo critério que se usa na Bolívia?

EVO MORALES
Aqui as terras produtivas são totalmente respeitadas. Mas existem algumas famílias que ocupam terras não para trabalhar, mas para negociar, para vender. Às vezes hipotecá-las para depois esquecer dessa hipoteca. As terras improdutivas devem desempenhar uma função social e econômica. Nisso está fundamentado a redistribuição da terra. Isso eu digo publicamente: “se algumas famílias possuem muita terra, por que voluntariamente não repassam essa terra a quem não tem, ou não tem suficiente?”.

HERÓDOTO
Quando o seu governo vai resolver o problema dos fazendeiros brasileiros que se estabeleceram na faixa de fronteira, a menos de cinqüenta quilômetros da fronteira entre o Brasil e a Bolívia?

EVO MORALES
Os que estiverem em situação legal, segundo o que me informou o Ministro das Terras, muitos deles, não todos logicamente, possuem o direito de se nacionalizar e, portanto, garantir as terras que compraram. São muito responsáveis. Quando eu e o presidente Lula conversamos, acertamos o apoio econômico às famílias. O que me preocupa são as famílias que ainda não podem nacionalizar-se, mas já estão assentadas. No momento é o problema que temos, mas deve existir solução. Assim como nossos irmãos bolivianos que trabalham em São Paulo e outras cidades, talvez ilegalmente, vocês têm que nos ajudar a resolver isso, assim como nós também ajudaremos. Temos que nos unir para buscar soluções conjuntas aos problemas sociais dos irmãos brasileiros, assim como dos irmãos bolivianos.

HERÓDOTO
Presidente, a prospecção que a Petrobras faz no mar territorial brasileiro culminou com o encontro de grandes jazidas de gás, na bacia de Santos, que vai passar a produzir daqui quatro anos ou cinco anos. Isto preocupa a Bolívia, que a produção interna de gás brasileiro possa concorrer com o gás produzido aqui, na Bolívia?

EVO MORALES
O Brasil já possui campos enormes, não só prováveis, mas já comprovados pelas empresas. Tenho algumas informações de que o país com o maior número de reservas comprovadas é a Venezuela e depois das novas descobertas o Brasil já é o segundo, e a Bolívia é o terceiro país. Por que eu repito o assunto da união? Neste momento, o gás boliviano pode ser importante para o Brasil. Daqui a pouco o gás ou o petróleo podem ser importantes para a Bolívia. É disso que eu falo quando cito a união. Eu tenho muita confiança, não só no governo e no presidente, mas no povo brasileiro. Existem empresas e empresários no Brasil que são muito solidários com os pobres. Mas também existem pessoas, forças sociais que compartilham as lutas. Já estivemos juntos em eventos como os Fóruns de Porto Alegre, com o presidente Lula e outros presidentes. Talvez existam alguns presidentes que só pensam em acumular capital, muita riqueza, muitos interesses. Mas entre nós, jamais vamos nos abandonar. É a melhor confiança, trabalhar juntos na solução dos problemas. Portanto, nem a Bolívia vai assustar o Brasil, nem o Brasil vai assustar a Bolívia, se a gente pensar na vida e na humanidade e nas pessoas que realmente necessitam. Ontem acabou a Semana Santa.Com satisfação ouvi a mensagem de alguns dias atrás do Papa quando disse que existem três pecados da globalização. E como atacar esses três pecados? Bom, não acumular muitas riquezas, que é a nossa luta permanente, diária. Não acabar com o meio ambiente, que é outra luta dos povos. Nós, povos indígenas, moramos em harmonia com a Mãe Terra. E não acabar, ou desconhecer os direitos sociais, que é outra luta. Uma coincidência enorme. É a primeira vez que concordo com a mensagem do Papa. E agora? Como aplicá-las? Se for a luta dos povos, então é melhor tentar nos unir. Agora pode ser uma alternativa para solucionar imediatamente ou em médio prazo o tema da energia. No futuro, possivelmente o Brasil. Somos países vizinhos e irmãos e temos que trabalhar juntos para solucionar os nossos problemas.

HERÓDOTO
Presidente, há algum tempo, o presidente da Venezuela, Hugo Chavez, propôs a construção de um grande gasoduto. Um grande sistema energético entre Venezuela, Bolívia, Brasil e Argentina. O senhor acha isso factível? É possível de ser feito ou é um sonho?

EVO MORALES
Veja, eu acho que isso é luz, portanto deve ser um serviço básico, um direito do ser humano. Presidentes como Chavez, Lula e outros presidentes pensam que os serviços básicos são um direito do ser humano. Então, é melhor avançar, nos unir para solucionar os serviços básicos, como na energia, água. Já ouvi que com o gasoduto a Venezuela vai nos tirar o mercado e não vamos poder vender. Eu acho que no futuro esse tema vai se acirrar. Portanto temos que procurar a médio e longo prazo, planificar, para que não falte energia, não falte gás. Como presidentes que pensam no futuro de seus povos. Junto com a presidente da Argentina, obrigar-nos a calcular e medir e deixar que os nossos técnicos nos dêem as soluções. O gasoduto da Venezuela que passa por Brasil, entre o Brasil e a Argentina, o melhor é ficar unidos. Sempre vamos trabalhar para resolver os problemas solidariamente.

HERÓDOTO
Presidente, a Bolívia está entre o Mercosul e a Comunidade Andina. Com quem ficará?

EVO MORALES
Em primeiro lugar é importante fazer profundas reformas, tanto na Comunidade Andina como no Mercosul, e que estes mecanismos de interação resolvam os problemas sociais. Vamos debater quais são as nossas diferenças. Mas se tivermos que unir a CA com o Mercosul, que essa seja a grande base para a UNASUR. Estamos apostando na Unidade Sul-americana. A cúpula presidentes, realizada em dezembro de 2006 em Cochabamba, foi importantíssima. Imagine, com duas cúpulas já temos o Estatuto Constitutivo da UNASUR, a Unidade Sul-americana. Dizem que na Europa isso demorou 50 anos. Nós conseguimos na segunda cúpula de presidentes da América do Sul. Digo isto com muita felicidade. No encontro grupo do Rio, realizado em Santo Domingo semanas atrás, junto com os presidentes da América Latina, resolvemos um problema de dois ou três países, da Colômbia e do Equador. Antes acontecia um apadrinhamento. O Império, os Estados Unidos resolviam, fundavam. Agora somos nós. Na reunião da OEA da semana passada, nossos chefes de Estado estavam unidos para que nós mesmos resolvêssemos nossos problemas. Eu sinto que América do Sul é uma grande esperança para a humanidade e o planeta Terra. A América do Sul preserva o meio ambiente, preserva seus recursos naturais. Preserva, por exemplo, suas florestas. Eu até me arrisquei a dizer que somos a uma reserva moral. Estes processos democráticos de liberação não são casuais. Alguns, talvez com muita força e clareza, perante o Império e outros com muitos cálculos políticos. São mostras claras de liberação. Portanto, eu compartilho com o presidente Kirchner quando de presidente falou para o ex-presidente: “A América Latina não pode ser o carpete do Império dos Estados Unidos”. Isso nós não só falamos como também fazemos. Esses dois fatos, tanto a reunião do Grupo do Rio como a reunião dos chefes de Estado na OEA, foram alentadores. Então por que não? Nesse momento a CA e o Mercosul, reformulando ou mudando alguns aspectos, podem ser a base para a Unidade da América do Sul. Eu sonho que América do Sul tenha apenas uma moeda. Imagine como na Europa. O euro, europeu, se valoriza constantemente, enquanto o dólar dos Estados Unidos deprecia-se. Se a gente, de maneira conjunta, souber aproveitar os nossos recursos naturais, seremos uma esperança para o mundo.

HERÓDOTO
Presidente, o senhor fez uma porção de elogios ao Presidente Lula. Recentemente, a secretária de Estado dos Estados Unidos esteve no Brasil, Condoleeza Rice, e disse que o Lula é o maior amigo dos Estados Unidos aqui na América do Sul.

EVO MORALES
Bom, eu entendo. Às vezes precisamos que presidentes sejam amigos, mas sem renunciar aos seus princípios. Eu não tenho nenhuma queixa sobre o presidente Lula. Eu também queria que os Estados Unidos fossem amigos do meu governo e da minha presidência. Mas a minha experiência até agora é que a Embaixada dos Estados Unidos encabeça a conspiração contra o meu governo. O presidente Lula em sua última visita aqui no palácio me disse: “Evo, paciência, paciência, paciência”. Vou ter paciência, jamais vou quebrar as relações com ninguém, e assim vamos a melhorar as relações diplomáticas com todos de acordo com nossas necessidades e capacidades econômicas. Somos da cultura do diálogo, somos da cultura da amizade apesar de que elas gerem provocações e agressões. Claro, a dor não cicatriza facilmente. Por exemplo, quando eu era dirigente sindical, diziam que eu era narcotraficante, terrorista, assassino, da máfia da coca. Um mês atrás, o chefe do Departamento do Estado, não, o do Comando Sul, colocou na CNN de um lado o Presidente Evo Morales e do outro o presidente do Irã, e falou: “A aliança do terrorismo do narcotráfico”.O Embaixador, ou o ex-embaixador Manuel Rocha, em 2002 disse que o Evo era o Bin Laden andino e que os cocaleiros, os produtores da folha de coca, eram os talibãs. Eu respeito as recomendações do presidente Lula quando ele fala: “paciência, paciência”. Porém, a grande vantagem que tem o meu governo é que essas pessoas pobres dos movimentos sociais, com o seu presidente,há dois dias se juntaram em Chuquisaca. Impressionante. As pessoas voluntariamente se concentram para repudiar essas políticas agressivas que não são internas. São também internas, mas, sobretudo, vêm de fora. Existe um grande movimento internacional de conspiração contra os presidentes e governos provenientes das democracias libertadoras. Por isso, invejo a amizade do Lula com os Estados Unidos. Também gostaria de ter isso, mas eles não gostam de mim. Mas vou agüentar tudo por esse processo de mudança, tudo pelo nosso povo. Não vamos partir para cima deles, não vamos fazer isso.


HERÓDOTO
Presidente, já que o senhor usou a palavra terrorista, como é que o senhor define as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia? Uma vez que elas são chamadas por alguns países no mundo, pelos Estados Unidos e pela Europa, de terroristas.

EVO MORALES
Seguramente nas décadas de1950, de 60 e talvez na de 70, era importante que as forças sociais partissem para a luta armada contra o Império. Agora, desde 1980, 90 e nesse novo milênio, é o Império que luta contra os povos. Já não são mais necessários movimentos como as FARC. Sou muito sincero, porém tampouco precisamos de governos que acabem com esse tipo de movimento, com as vidas. Não concordo com isso. É importante o diálogo para resolver esses assuntos políticos. Antes pensávamos que a luta armada era a solução para os povos. Porém estamos vendo na Venezuela, na Argentina, no Brasil e na Bolívia que as democracias podem fazer transformações profundas, em busca de igualdade, justiça e dignidade para nossos povos. Eu tenho muito respeito pelos companheiros das FARC, mas eles deveriam deixar de lado os fuzis e brigar nas eleições. Nós dizemos aqui: “não às armas e sim às urnas”. Através das urnas podemos fazer profundas transformações. Sempre haverá algum grupo de oposição, é normal. Eu digo às vezes que os conservadores, os que têm maior poder de compra, nos atacam todos os dias. Vejo isso com muita felicidade, porque buscamos essa igualdade. Se os pobres saíssem contra o Evo seria muito diferente. Eu ficaria preocupado. Pensaria que não estaria fazendo nada por eles. Nem sempre podem se resolver os problemas sociais, mas com as experiências que estamos vivendo na América Latina, eu ainda sinto que presença das FARC na Colômbia justifica a presença dos militares, ou a presença dos norte americanos na Colômbia, portanto na América do Sul. Isso precisa mudar. Meu pedido é que nós, presidentes, façamos um esforço junto ao presidente da Colômbia, através do diálogo e acordos políticos, para evitar um conflito entre nossos povos.

HERÓDOTO
Presidente, na sua avaliação, depois desse recente confronto entre Equador, Colômbia e Venezuela, com o rompimento de relações diplomáticas, depois o reatamento, o presidente Hugo Chavez perdeu um pouco de sua influência no Continente Sul-americano?

EVO MORALES
Não. Não sei se essa é uma opinião sua.

HERÓDOTO
É uma pergunta.

EVO MORALES
Para mim, depois de Fidel, ele aparece como outro líder com clareza de uma posição antiimperialista e acho que isso influi bastante. Eu lembro que aqui, quando o ex-embaixador disse: “não votem no Evo Morales”, muitos dirigentes e partidos de esquerda se juntaram e perguntaram: “Por que os Estados Unidos precisam dizer ‘não votem no Evo Morales’?”. Isso é a consciência do povo. A partir daí houve um crescimento, um sentimento de luta, pela dignidade, pela igualdade. Um sentimento para frear a soberba de alguns embaixadores e algumas autoridades dos Estados Unidos, não do povo norte-americano. Onde quer que eu vá, nos encontros e eventos internacionais, o presidente Chavez é o mais aplaudido, é o mais querido. Quem as pessoas mais querem escutar é o presidente Chavez. Talvez em outro nível diplomático exista outro pensamento, outra maneira de comunicação. Nessas cúpulas de chefes de Estado atuais ele é o presidente mais aclamado pelos movimentos sociais. Portanto eu acredito que o presidente talvez seja questionado por alguns meios de comunicação, ou por alguns presidentes e diplomatas. Porém os movimentos sociais do povo admiram-no. O que mais me fascina é que nossos povos não nos abandonam. Eu vejo duas coisas importantes nisso. Quando um dirigente estava antes em evidencia, e hoje é presidente e defende seu povo, ele vê também o povo defender seu líder ou seu presidente ou dirigente. Essa é a minha experiência. Para mim a história na liderança e na presidência se repetem. Agora há pouco comentávamos sobre a necessidade de implantar mais políticas sociais. É para isso que chegamos à presidência. É isso que permanentemente faz um presidente compromissado com seu povo. Esses presidentes são muito queridos pelo povo, não somente em seu país, mas em todo mundo.

HERÓDOTO
Presidente, uma pergunta sobre futebol. Quem foi melhor, Pelé ou Maradona?

EVO MORALES
Aí você me deixou contra a parede. Em seus tempos Pelé e novos tempos Maradona. Mas eu cumprimento o Maradona. Como qualquer pessoa, ele pode ter seus ideais, e é muito solidário. Essa solidariedade do Maradona é importantíssima, é algo seguramente sentimental o que vem do Maradona. Eu quero aproveitar essa oportunidade juntamente com os indígenas e negros, excluídos socialmente, para pedir a solidariedade do irmão e companheiro Pelé. É muito famoso certamente. Eu o vi em algumas revistas nos Estados Unidos, toda sua história me surpreendeu. Porém, quando os povos excluídos necessitam dos seus líderes, esses atletas, atletas como Pelé, devem estar junto do seu povo. Saímos desses setores e vemos que os atletas, os jogadores de futebol, pensam de outra maneira sobre a vida e sobre a humanidade. Inclusive os jornalistas esportivos, eu passei uma temporada com muitos amigos jornalistas esportivos. Não sabem muito de política, não lhes interessa. Mas eles se interessam em como divertir, esse é termo correto, o povo durante as transmissões de futebol pelo rádio e televisão, escrever. Porque o esporte é interação. Além desses campeões, desses campeonatos e troféus que são uma interação, esperamos contar também com o apoio do povo brasileiro. Do governo já recebemos bastante apoio, assim como de alguns times do Brasil. Seria para mim uma honra e ficaria orgulhoso do apoio do Pelé, pois nesse momento está quase ocorrendo um rompimento no esporte e, no entanto, todos apostamos na universalidade do futebol. Apoiamos essa universalidade até o momento em que vimos que a FIFA era maior que a ONU. Mas com esse tipo de decisão, não é possível que a FIFA fique menor que a ONU? Mas eu agradeço toda a solidariedade de toda a América do Sul, dos países, de algumas federações e associações ligadas ao futebol. Somente queremos que se respeite a decisão da América do Sul. Por que eles têm que impor isso de fora e de cima? É algo inaceitável. Aqui decidimos que cada país deve tomar sua própria decisão, aonde deve jogar sua seleção. Assim como a federação, associação de futebol do Brasil, que em 1993, quando ganhamos aqui por 2 a 1, levou a seleção boliviana a Recife. Não falamos nada e respeitamos a decisão deles. E fomos jogar em Recife. Foi uma goleada de 5 a 0 ou de 6 a 0, mas faz parte do território do Brasil e essa decisão soberana foi respeitada. Porém a decisão do povo boliviano e de qualquer país deve ser respeitada. Que seu povo decida onde irá jogar, que é o mais democrático e mais digno. Nossa luta agora será para que se respeite a decisão da América do Sul, não somente da Bolívia. Agradecemos essa decisão, por unanimidade, de rechaçar o veto e não aceitar a imposição da FIFA. Aqui não se joga, ou se elimina um país europeu ou de outras partes. É somente uma campanha pela defesa da universalidade do futebol.

HERÓDOTO
Presidente, uma última pergunta. Como será resolvido o caso dos quatro departamentos bolivianos que querem autonomia e marcaram uma consulta popular para o dia 4 de maio?

EVO MORALES
Somente um departamento que já programou a votação para 4 de maio, o de Santa Cruz. Os outros ainda estão se preparando. A autonomia com unidade, com solidariedade e com igualdade está garantida. A autonomia de separação, de divisão e de independência não será permitida. Sou presidente e tenho a obrigação de defender a unidade do país. No entanto, estamos fazendo todos os esforços para resolver isso através do diálogo. Tampouco podemos aceitar que haja autonomias à margem da legalidade, à margem da constituição. Mas o problema não é a autonomia, é o Evo Morales. Alguns grupos, cidades, alguns oligarcas, não aceitam isso. Como esse índio, esse camponês governa? Se eu não estivesse no palácio se esqueceriam da autonomia, porque novamente estes grupos se aproveitariam do governo central, como sempre se aproveitaram. Por que não falaram antes? Passaram tantos anos, temos 180 anos de presidentes e governos que garantiram autonomia. Por que justo agora querem mudar essa autonomia? Por que não garantiram autonomia em seu governo? Por isso não se trata de um problema de autonomia ou um problema econômico. Trata-se de um problema de cobiça e não aceitam, esses grupos, que um camponês, um dirigente sindical seja presidente da República. Esse é o assunto.

HERÓDOTO
Presidente, muito obrigado pela sua entrevista.

EVO MORALES
Muito obrigado e espero que não seja a última vez. Estou muito feliz com a entrevista. Acho que da próxima vez já entenderei melhor o português.

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